Maria Rita Kehl
Comício do Partido dos Trabalhadores, dia primeiro de maio
de 99. Tem mais gente do que no ano passado, ou retrasado, mas a diferença não
é muito significativa. O que chama a atenção é a presença de um outro tipo de
gente, um "público" diferente da militância petista que já posso
chamar de tradicional, dezoito anos depois. São jovens das periferias de São
Paulo. A caracterização é clara. Você olha para eles e vê que não vieram dos
sindicatos, das comunidades católicas, da base organizada de alguns deputados,
da militância feminista. Esta moçada usa boné, bermudas largas, moletons
imensos, cabelo raspado e óculos escuros. São escuros também, a grande maioria.
Estão atentos, um pouco tensos, impacientes mas nada agressivos. Escutam os
discursos (sempre os mesmos, sempre chatos, com exceção das falas vivas do Lula
e do Vicentinho), aplaudem, vaiam, repetem algumas palavras de ordem. O clima é
pacífico e ordeiro, contrariando preconceitos da classe média branca. Alguns
garotos sobem nas janelas do prédio dos Correios para ver melhor; um vitrô abre
sozinho, pressinto uma invasão, mas não: os próprios meninos se encarregam de
fechar o vidro e continuam equilibrados perigosamente, assistindo a tudo lá do
alto.
Quando o animador do comício anuncia a apresentação de
alguns grupos de Rap, encerrando com os Racionais MC’s, entendo a
presença da moçada: são os manos. O grande exército dos fãs dos Racionais.
Vale falar em fãs, no caso deles? não, com certeza deve haver um termo
que indique outro tipo de interação entre a multidão de jovens pobres e os
grupos de Rap que os representam. É como se cada um deles se considerasse um rapper
em potencial, capaz de contar sua vida no ritmo repetitivo e opressivo, nas
rimas obrigatórias, às vezes preciosas, às vezes brutais, executando a dança
que não autoriza alegria nenhuma, sensualidade nenhuma - disto que nasceu na
periferia de algumas cidades americanas como rhythm and poetry e se
espalhou pelo Brasil, partindo de São Paulo, é claro: a mais opressiva das
cidades brasileiras.
Há dezessete anos atrás, a grande festa petista de
encerramento da campanha da primeira candidatura do Lula em 1982, daquela vez
ao governo de São Paulo, contou com a presença estranha, espontânea, não
necessariamente politizada mas talvez em busca de alternativas, de vários punks
da periferia. Sem liderança, desorganizados, os punks fizeram um certo
"turismo revolucionário" em volta do PT, que não sabia o que fazer
com eles. Seis anos depois, num melancólico e esvaziado 1o. de maio de 88 na
praça da Sé, vi um grupo de punks, já então aderidos a um patético
neonazismo, cruzar a praça em atitude ameaçadora, procurando briga. Viraram
inimigos da esquerda, truculentos, racistas. Buscaram reconhecimento - isto que
todo jovem busca, mas que os pobres precisam lutar muito mais para obter -
identificando-se com o opressor. Arrogância, racismo, violência física; os punks
marcaram sim sua presença na cidade, mas não foram capazes de superar a
condição subjetiva de sua alienação. Tudo o que conseguiram fazer foi passar
adiante, para cima de outros garotos ainda mais frágeis do que eles, a
humilhação que se recusavam (com razão) a sofrer.
Agora é diferente. A esquerda talvez ainda não saiba o que
fazer, ou o que propor, para os milhares de rappers que, liderados pelo
Mano Brown, parecem interessados em radicalizar um discurso contundente de
oposição. Mas os "manos" têm uma idéia um pouco mais precisa de sua
revolução, a começar pelas armas: sua palavra em primeiro lugar. Em seguida,
sua "consciência", sua "atitude"- expressões empregadas
insistentemente nas letras dos Racionais, e que em termos gerais
significam: orgulho da raça negra e lealdade para com os irmãos de etnia e de
pobreza. Sabem para quem estão falando, e sabem sobretudo de onde estão
falando: "Mil novecentos e noventa e três, fudidamente voltando,
Racionais/ usando e abusando de nossa liberdade de expressão/ um dos poucos
direitos que um jovem negro ainda tem neste país./ Você está entrando no mundo
da informação/ auto conhecimento, denúncia e diversão./ Este é o raio-x do
Brasil, seja bem vindo"
( "Fim-de-semana no parque" - Mano Brown e Edy Rock).
( "Fim-de-semana no parque" - Mano Brown e Edy Rock).
Os quatro jovens integrantes do grupo - Mano Brown, Ice
Blue, KL Jay e Edy Rock - apesar das 500 mil cópias vendidas do último CD, Sobrevivendo
no Inferno , recusam qualquer postura de pop star. Para eles, a
questão do reconhecimento e da inclusão não se resolve através da ascensão
oferecida pela lógica do mercado, segundo a qual dois ou três indivíduos
excepcionais são tolerados por seu talento e podem mesmo se destacar de sua
origem miserável, ser investidos narcisicamente pelo star system e se
oferecer como objetos de adoração, de identificação e de consolo para a grande
massa de fãs, que sonham individualmente com a sorte de um dia também virarem
exceção. Os integrantes dos Racionais apostam e concedem muito pouco à
mídia. "Não somos um produto, somos artistas", diz KL Jay em
entrevista ao Jornal da Tarde (5/8/98), explicando por que se recusam a
aparecer na Globo (uma emissora que apoiou a ditadura militar "e que faz
com que o povo fique cada vez mais burro") e na SBT ("como posso ir
ao Gugu se o programa dele só mostra garotas peladas rebolando ou então explorando
o bizarro"?). Até mesmo o rótulo de artista é questionado, numa recusa a
qualquer tipo de "domesticação". "Eu não sou artista. Artista
faz arte, eu faço arma. Sou terrorista". (Mano Brown).
O tratamento de "mano" não é gratuito. Indica uma
intenção de igualdade, um sentimento de fratria, um campo de identificações horizontais,
em contraposição ao modo de identificação/dominação vertical, da
massa em relação ao líder ou ao ídolo. As letras são apelos dramáticos ao
semelhante, ao irmão: junte-se a nós, aumente nossa força. Fique esperto, fique
consciente - não faça o que eles esperam de você, não seja o "negro
limitado" (título de uma das músicas de Brown) que o sistema quer, não
justifique o preconceito dos "racistas otários" (título de outra música).
A força dos grupos de Rap não vem de sua capacidade de excluir, de colocar-se
acima da massa e produzir fascínio, inveja. Vem de seu poder de inclusão, da
insistência na igualdade entre artistas e público, todos negros, todos de
origem pobre, todos vítimas da mesma discriminação e da mesma escassez de
oportunidades. Antes dos Racionais, muitos grupos se apresentaram no
Anhangabaú neste 1o.de maio. A impressão que se tinha é que eram todos
protegidos dos manos mais velhos, que aceitaram tocar sob condição de abrir
espaço para os menos conhecidos. Quando um começo de vaia recebeu a
apresentação do Apocalypse 16, os meninos não se intimidaram. Com voz de
criança, o líder desta banda cujos componentes não aparentam mais do que 14, 15
anos, chamou a atenção da platéia, conclamou à união, à "atitude
consciente", lembrou que eram todos manos; calou a vaia e terminou seu
pequeno discurso com: "Apocalypse 16, armados de consciência!"
- depois tocaram. Sem muito sucesso, mas tocaram.
Os rappers não querem excluir nenhum garoto ou garota
que se pareça com eles.
"Eu sou apenas um rapaz latino americano/ apoiado por
mais de cinqüenta mil manos/ efeito colateral que o seu sistema fez",
canta Mano Brown, líder dos Racionais.("Capítulo 4, Versículo
3".) À diferença das bandas de rock pesado, não oferecem a seu público o
gozo masoquista de ser insultados por um pop-star milionário fantasiado de outsider.
A designação "mano" faz sentido: eles procuram ampliar a
grande fratria dos excluídos, fazendo da "consciência" a arma capaz
de virar o jogo da marginalização. "Somos os pretos mais perigosos do país
e vamos mudar muita coisa por aqui. Há pouco ainda não tínhamos consciência
disso" ( KLJay).
A que perigo Jay se refere? A julgar por algumas declarações
à imprensa e a maior parte das faixas dos Cds dos Racionais, há uma
mudança de atitude, partindo dos rappers e pretendendo modificar a auto
imagem e o comportamento de todos os negros pobres do Brasil: é o fim da
humildade, do sentimento de inferioridade que tanto agrada à elite da casa
grande, acostumada a se beneficiar da mansidão - ou seja: do medo - de nossa
"boa gente de cor". "Quando vocês falam com um cara, o que
esperam que aconteça depois?" (Raça) - Brown: "Levantar a
cabeça, perder o medo e encarar. Se tomar um soco, devolve". "E o que
aconteceria, (Raça) se todo negro da periferia agisse assim?" -
"O Brasil ia ser um país mais justo". As mensagens dos Racionais
para o pessoal que ouve e compra seus CDs são as seguintes: "Gostaria que
eles se valorizassem e gostassem de si mesmos"(Mano Brown).
"Ideologia e auto-valorização" (KL Jay). "Dignidade deve ser o
seu lema" (Ice Blue). "Que escutem os Racionais, é lógico. E
paz!"(Edy Rock). (entrevista para DJ Sound n.15, 1991).
Eles apelam para a consciência de cada um, para mudanças de
atitude que só podem partir de escolhas individuais; mas a auto-valorização e a
dignidade de cada negro, de cada ouvinte do Rap, depende da produção de um
discurso onde o lugar do negro seja diferente do que a tradição brasileira
indica. Daí a diferença entre os Racionais e outro jovem músico negro,
outro Brown, este bahiano. "Tem gente que fala que o Rap de São Paulo é
triste (Raça). O Carlinhos Brown falou que isto é não saber reinar sobre
a miséria" - Mano Brown: "Na Bahia os caras têm que esconder a
miséria que é pro turista vir, pra dar dinheiro pros caras lá, inclusive o
Carlinhos Brown. São Paulo não é um ponto turístico. E esse negócio de reinar
sobre a miséria, você não pode é aceitar a miséria. Mas acho válido o que ele
faz pela sua comunidade".
Acontece que os Racionais não estão interessados nem
em reinar sobre a miséria (o que seria isto? uma forma mais sedutora de
dominação?) nem em esconder a miséria para inglês ver. Seu público alvo não é o
turista - são os pretos pobres como eles. Não, eles não excluem seus iguais,
nem se consideram superiores aos anônimos da periferia. Se eles excluem alguém,
sou eu, é você, consumidor de classe média - "boy",
"burguês", "perua", "babaca", "racista
otário" - que curtem o som dos Racionais no toca-CD do carro
importado "e se sente parte da bandidagem" (KL Jay). Ou seja: não
estão vendendo uma fachada de malandragem para animar o tédio dos jovens de
classe média.
Assim, fica difícil gostar deles não sendo um(a) deles. Mais
difícil ainda falar deles. Eles não nos autorizam, não nos dão entrada.
"Nós" estamos do outro lado. Do lado dos que têm tudo o que eles não
têm. Do lado dos que eles invejam, quase declaradamente, e odeiam,
declaradamente também. Mas sobretudo, do lado dos que eles desprezam.
Como gostar desta música que não se permite alegria nenhuma,
exaltação nenhuma? Como escutar estas letras intimidatórias, acusatórias,
freqüentemente autoritárias, embaladas pelo ritmo que lembra um campo de
trabalhos forçados ou a marcha dos detentos ao redor do pátio, que os garotos
dançam de cabeça baixa, rosto quase escondido pelo capuz do moleton e os óculos
escuros, curvados, como se tivessem ainda nos pés as correntes da escravidão?
Por onde se produz a identificação através de um abismo de diferenças, que faz
com que adolescentes ricos ouçam e (por que não?) entendam o que estão
denunciando os Racionais, e uma mulher adulta de classe média como eu
receba a bofetada violenta do Rap não como um insulto mas como um desabafo
compartilhado, não como uma provocação pour épater, mas como uma
denúncia que me compromete imediatamente com eles?
Se eles não me autorizam, vou ter que forçar a entrada. A
identificação me facilita as coisas; aposto no espaço virtual, simbólico e
portanto inesgotável da fratria e me passo para o lado dos manos, sem esquecer
(nem poderia) a minha diferença - é de um outro lugar, do "meu"
lugar, que escuto e posso falar dos Racionais MC’s. É porque eles falam
diretamente não apenas à minha má consciência de classe média esquerdista, mas
ao mal estar que sinto por viver num país que reproduz diariamente, numa
velocidade de linha de montagem industrial, a violenta exclusão de milhares de
jovens e crianças que, apesar dos atuais discursos neoliberais que enfatizam a
competência e o esforço individual, não encontram nenhuma oportunidade de sair
da marginalização em que se encontram. Milhares de crianças e jovens cujas
vidas correm o risco de ser apenas o "efeito colateral que o seu (meu!)
sistema fez" ("Cap.4, Versículo 3"- Mano Brown). É a capacidade
de simbolizar a experiência de desamparo destes milhões de periféricos urbanos,
de forçar a barra para que a cara deles seja definitivamente incluída no
retrato atual do país (um retrato que ainda se pretende doce, gentil,
miscigenado), é a capacidade de produzir uma fala significativa e nova sobre a
exclusão, que faz dos Racionais MC’s o mais importante fenômeno musical
de massas do Brasil dos anos 90.
A fratria órfã
"60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais
já sofreram violência policial.A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são
negras. Nas universidades brasileiras, apenas 3% dos alunos são negros. A cada
4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo. Aqui
quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente" ("Cap. 4, Versículo
3).
Quem prestar atenção nas letras quilométricas do Rap,
provavelmente vai se sentir mal diante do tom com que são proferidos estes
discursos. É um tom que se poderia chamar de autoritário, mistura de
advertência e de acusação. A voz do cantor/narrador dirige-se diretamente ao
ouvinte, ora supondo que seja outro mano - e então avisa, adverte, tenta
"chamar à consciência" - ora supondo que seja um inimigo - e então,
sem ambigüidades, acusa. Diante de uma voz assim tão ameaçadora, de um discurso
que nos convida a "trocar uma idéia" mas não troca nada, não negocia
nada de seu ponto de vista e de sua posição ( posição sempre moral, mas não
necessariamente moralista - veremos), cabe ao ouvinte indagar: mas como ele se
autoriza? Quem ele pensa que é?
O Brasil é um país que se considera, tradicionalmente, órfão
de pai. Não prezamos nossos antepassados portugueses; não respeitamos uma elite
governante que não respeita nem a lei, nem a sociedade, nem a si mesma; não
temos grandes heróis entre os fundadores da sociedade atual, capazes de
fornecer símbolos para nossa auto-estima. Nossa passagem do "estado de
natureza" (que é como, erradamente, simboliza-se as culturas indígenas) ao
"estado de cultura" não se deu com a chegada de um grupo de puritanos
trazendo o projeto de fundar uma comunidade religiosa, como no caso dos Estados
Unidos, mas pelo despejo, nessas terras, de um bando de degredados da Coroa
portuguesa. Não vieram para civilizar, mas para usufruir e principalmente,
usurpar. Pelo menos é assim que se interpreta popularmente, com boa dose de
ironia, a chegada dos portugueses ao Brasil. Fundou-se assim o mito da
"pátria-mãe gentil" (que Caetano Velloso acertadamente chamou
"mátria", pedindo a seguir: "quero fratria"!) que tudo
autoriza, tudo tolera, "tudo dá".
É óbvio que o mito da abundância fácil produziu exploração,
concentração de riquezas numa escala que nos coloca em primeiro lugar no ranking
da vergonha mundial, e miséria. É óbvio que a orfandade simbólica produziu não
uma ausência de figuras paternas mas um excesso de pais reais, abusados,
arbitrários e brutais como o "pai da horda primitiva" do mito
freudiano. O que falta à sociedade brasileira não é mais um painho
mandão e pseudo protetor (vide ACM, Getúlio, Padre Cícero, etc.), mas uma fratria
forte, que confie em si mesma, capaz de suplantar o poder do "pai da
horda" e erigir um pai simbólico, na forma de uma lei justa, que contemple
as necessidades de todos e não a voracidade de alguns.
Mas numa sociedade acostumada ao paternalismo autoritário,
também para as formações fraternas, em sua função criadora de significantes e
de cidadania, coloca-se uma questão: como evitar que, do ato de coragem coletivo
que elimina a antiga dominação do pai onipotente e institui um novo pacto
civilizatório, produza-se um novo usurpador na figura do herói? Por outro lado
como manter, na ausência do herói concentracionário da fala coletiva (lembrar
Roland Barthes: "o mito é uma fala roubada") um discurso consistente
que suporte e legitime as formações sociais produzidas na horizontalidade das
relações democráticas? Como sustentar, na expressão de Jacques Rancière, a
"letra órfã", as novas formas de linguagem produzidas nas trocas
horizontais e que tentam comunicar, de um semelhante a outro, experiências que
façam sentido, que produzam valor, que sugiram um "programa mínimo"
para uma ética da convivência?
As falas dos Racionais oscilam; passam do lugar
comunitário dos manos ao lugar do herói exemplar, escorregando dali para o
lugar da autoridade, falando em nome de um "pai" que sabe mais, que pode
aconselhar, julgar, orientar. Por que "Racionais"? - perguntou o
repórter da revista Raça; Edy Rock - "Vem de raciocínio, né? Um
nome que tem a ver com as letras, que tem a ver com a gente. Você pensa pra
falar" (grifo meu). Brown - "Naquela época o Rap era muito bobo.
Rap de enganar, se liga, mano? Não forçava a pensar". Mais adiante, Brown
(respondendo a uma questão de por que o Rap é político) - "Você já nasceu
preto, descendente de escravo que sofreu, filho de escravo que sofreu, continua
tomando "enquadro" da polícia, continua convivendo com drogas, com
tráfico, com alcoolismo, com todos os baratos que não foi a gente que trouxe
pra cá. Foi o que colocaram pra gente. Então não é uma questão de escolha, é
que nem o ar que você respira. Então o Rap vai falar disso aí, porque a vida é
assim".
Vejamos um dos muitos trechos de letras que ilustram esta
dupla inscrição do sujeito, que por um lado "pensa pra falar" -
produz uma fala própria, destacada dos discursos do Outro - mas por outro lado
não poderia falar de outra coisa, "porque a vida é assim", ou seja -
não confunde sua autonomia pensante e crítica com uma arbitrariedade de
referências, como o delírio de auto-suficiência típico da alienação subjetiva
das sociedades de consumo. O distanciamento necessário para se pensar antes de
falar vem de um mergulho na própria história ( "somos descendentes de
escravo que sofreu...") e de uma aceitação ativa, não conformista, da
própria condição, do pertencimento a um lugar e uma coletividade que por um
lado fortalece os enunciados e por outro, recorta um campo a partir de onde o
sujeito pode falar, dificultando o escape na direção de fantasias de adesão a
fórmulas imaginárias de aliciamento ou de consolação.
"Eu não sei se eles/ estão ou não autorizados/ a
decidir o que é certo ou errado/ inocente ou culpado retrato falado/ não existe
mais justiça ou estou enganado? Se eu fosse citar o nome de todos os que se
foram/ o meu tempo não daria para falar mais.../ e eu vou lembrar que ficou por
isso mesmo/ e então que segurança se tem em tal situação/ quantos terão que
sofrer pra se tomar providência/ ou vão dar mais um tempo e assistir a
seqüência/ e com certeza ignorar a procedência/ O sensacionalismo pra eles é o
máximo/ acabar com delinqüentes eles acham ótimo/ desde que nenhum parente ou
então é lógico/ seus próprios filhos sejam os próximos (...) Ei Brown, qual
será a nossa atitude?/ A mudança estará em nossa consciência/ praticando nossos
atos com coerência/ e a conseqüência será o fim do próprio medo/ pois quem gosta
de nós somos nós mesmos/ tipo, porque ninguém cuidará de você/ não entre nessa
à toa/ não dê motivo pra morrer/ honestidade nunca será demais/ sua moral não
se ganha, se faz/ não somos donos da verdade/ por isso não mentimos/ sentimos a
necessidade de uma melhoria/ nossa filosofia é sempre transmitir/ a realidade
em si/ Racionais MC’s"("Pânico na zona Sul")
Nos últimos versos de "Júri Racional" o grupo
condena um negro "otário" que "se passou para o outro
lado", recusando a identificação com os manos em troca da aceitação dos
playboys.
"Eu quero é devolver nosso valor, que a outra raça
tirou/ Esse é meu ponto de vista. Não sou racista, morou?/ E se avisaram sua
mente, muitos de nossa gente/ mas você, infelizmente/ sequer demonstra
interesse em se libertar./ Essa é a questão, auto-valorização/ esse é o título
da nossa revolução/. Capítulo 1:/ O verdadeiro negro tem que ser capaz/ de
remar contra a maré, contra qualquer sacrifício./ Mas no seu caso é difícil:
você só pensa no próprio benefício./ Desde o início, me mostrou indícios/ que
seus artifícios são vícios pouco originais/ artificiais, embranquiçados
demais./ Ovelha branca da raça, traidor! Vendeu a alma ao inimigo, renegou sua
cor" Refrão : "Mas nosso júri é racional, não falha/ por que? não
somos fãs de canalha! " Conclusão: "Por unanimidade/ o júri deste
tribunal declara a ação procedente/ e considera o réu culpado/por ignorar a
luta dos antepassados negros/ por menosprezar a cultura negra milenar/por
humilhar e ridicularizar os demais irmãos/ sendo instrumento voluntário do
inimigo racista/. / Caso encerrado".
O viés autoritário desses versos, a meu ver, tem pelo menos
três determinantes. Primeiro, a certeza de que uma causa coletiva está em jogo. Trata-se de
estancar o derramamento de sangue de várias gerações de negros, de barrar a
discriminação sem recusar a marca originária. Nada de abaixar a cabeça, fazer o
"preto de alma branca" que a elite sempre apreciou. Trata-se de
produzir "melhoria" na vida da periferia. Mas para isto - aí vem a
segunda razão - é necessário "transmitir a realidade em si". Isto
porque a maior ameaça não vem necessariamente da violência policial nem da
indiferença dos "boys". Vem da mistificação produzida pelos apelos da
publicidade, pela confusão entre consumidor e cidadão que se estabeleceu no
Brasil neoliberal, que fazem com que o jovem da periferia esqueça sua própria
cultura, desvalorize seus iguais e sua origem, fascinado pelos signos de poder
ostentados pelo burguês. É aí, dizem as letras de Brown, que ele se perde:
"Você viu aquele mano na porta do bar/ ele mudou demais
de uns tempos pra cá/ cercado de uma pá de tipo estranho/que promete pra ele o
mundo dos sonhos/ Ele está diferente, não é mais como antes/ agora anda armado
a todo instante/ não precisa mais dos aliados/ negociantes influentes estão ao
seu lado./ Sua mina apaixonada, linda e solidária/ perdeu aposição, ele agora
tem várias...(...) Ascensão meteórica, contagem numérica/ farinha impura, o
ponto que mais fatura/ um traficante de estilo, bem peculiar/ você viu aquele
mano na porta do bar?" (...) "A lei da selva é assim, predatória/
clic, clec, BUM, preserve sua glória/ transformação radical, estilo de vida/
ontem sossegado, e tal/ hoje homicida/ ele diz que se garante e não tá nem aí/
usou e viciou a molecada daqui"...("Mano na porta do bar" -
Brown e Rock).
Aqui entra a terceira determinação, que justifica que o
discurso predominantemente moral dos Racionais não se confunda com
moralismo, já que não fala em nome de nenhum valor universal além da
preservação da própria vida. O tom autoritário das letras está avisando os
manos: onde reina a "lei da selva" a pena de morte já está instalada,
sem juízo prévio. Diante da vida sempre ameaçada, não se pode vacilar.
"Você está vendo o movimento na porta do bar?/ tem muita
gente indo pra lá, o que será? /(...) Ouço um moleque dizer, mais um cuzão da
lista/ dois fulanos numa moto, única pista/ eu vejo manchas no chão, eu vejo um
homem ali/ é natural para mim, infelizmente./ A lei da selva é traiçoeira,
surpresa/ hoje você é o predador, amanhã é a presa./ Já posso imaginar, vou
confirmar/ me aproximei da multidão e obtive a resposta/ você viu aquele mano
na porta do bar?/ ontem ele caiu com uma rajada nas costas"...
O terror, e não o poder, dá o tom exasperado a essas falas.
O crime e a droga são uma tentação enorme, agravada ainda pela falta de
alternativas. O Rap não oferece, evidentemente, nenhuma saída material para a
miséria; também não aposta na transgressão como via de auto-afirmação, como é
comum entre os jovens de classe média (exemplo disso, a meu ver, é o sucesso do
grupo Planet Hemp). Muito menos no confronto direto com a principal
fonte de ameaças contra a vida dos jovens, que a julgar pelo Rap, é a própria
polícia. Conformismo ou sabedoria? Provavelmente um pouco de cada um, se é que
se pode considerar conformista o ceticismo dos manos quanto à possibilidade de
enfrentamento com as instituições policiais no Brasil. O que o Rap procura
promover são algumas atitudes individuais fundamentadas numa referência é coletiva.
"Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal/ por menos de um real,
minha chance era pouca/ mas se eu fosse aquele moleque de touca/ que engatilha
e enfia o cano dentro de sua boca/ de quebrada, sem roupa, você e sua mina/ um,
dois, nem me viu! já sumi na neblina/. Mas não! permaneço vivo, eu sigo a
mística/ 27 anos contrariando a estatística. (grifo meu) /Seu comercial
de TV não me engana/ eu não preciso de status, nem fama./ Seu carro e sua grana
já não me seduz/ e nem a sua puta de olhos azuis./ Eu sou apenas um rapaz
latino-americano/apoiado por mais de cinqüenta mil manos (grifo meu)/
efeito colateral que seu sistema produz..." (Capitulo 4, Versículo 3).
Função do pai, invenções dos manos
Os "cinqüenta mil manos" produzem um apoio - mas
onde está um pai? Qual o significante capaz de abrigar uma lei, uma interdição
ao gozo, quando a única compensação é o direito de continuar,
"contrariando as estatísticas", a lutar pela sobrevivência?
Surpreendentemente, Mano Brown "usa" Deus para fazer esta função.
Embora em nenhum momento fale em nome de igreja nenhuma, Deus é lembrado - mas
para quê? "Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor/ pelo rádio, jornal,
revista e outdoor/ Te oferece dinheiro, conversa com calma/contamina seu
caráter, rouba sua alma/ depois te joga na merda sozinho,/ transforma um preto
tipo A num neguinho./ Minha palavra alivia sua dor,/ ilumina minha alma,
louvado seja o meu Senhor/ que não deixa o mano aqui desandar,/ ah, nem sentar
o dedo em nenhum pilantra./ Mas que nenhum filho da puta ignore a minha lei:/
Racionais, capítulo 4, versículo 3".
Deus é lembrado como referência que "não deixa o mano
aqui desandar", já que todas as outras referências ("rádio, jornal,
revista e outdoor") estão aí para "transformar um preto tipo A num
neguinho". Deus é lembrado como pai cujo desejo indica ao filho o que é
ser um homem: um "preto tipo A". Pela primeira vez, fez sentido para
mim a frase "Jesus te ama", que vejo freqüentemente colada nos vidros
dos carros (embora naqueles casos, a meu ver, o sentido propagandístico,
voltado ao aliciamento e domesticação do outro, predomine sobre o sentido de
auto-ajuda da utilização de Deus feita por Mano Brown); pois é preciso que o
Outro me ame, para que eu possa me amar. É preciso que o Outro aponte, a partir
do seu desejo (que não se pode conhecer, mas a cultura não cessa de produzir
pistas para que se possa imaginar), um lugar de dignidade, para que o sujeito
sinta-se digno de ocupar um lugar.
Não me atrevo a interpretar a religiosidade pessoal, íntima,
dos componentes do grupo. Mas sugiro que o Senhor que aparece em alguns destes
Raps (junto com os Orixás! ver "A fórmula mágica da paz" - Mano
Brown: "agradeço a Deus e aos Orixás/ parei no meio do caminho e olhei
para trás"), além de simbolizar a Lei, tem a função de conferir valor à
vida, que para um mano comum "vale menos que o seu celular e o seu
computador"("Diário de um detento", Brown - Jocenir, este último
prisioneiro da casa de Detenção de São Paulo). No que depender da lei dos homens,
estes jovens já estão excluídos, de fato, até do programa mínimo da
Declaração dos Direitos do Homem. A alternativa simbólica moderna, imanente, a
Deus, seria "a sociedade" - esta outra entidade abstrata, abrangente,
que deveria simbolizar o interesse comum entre os homens, a instância que
"quer" que você seja uma pessoa de bem, e em troca lhe oferece
amparo, oportunidades e até algumas alternativas de prazer.
A sociedade - temos mais de duzentos anos de Iluminismo nas
costas! mas será que o Iluminismo alguma vez falou para a ralé? - é uma
instância superior a Deus do ponto de vista da emancipação dos homens, já que
existe no reino deste mundo, organizada a partir - supõe-se - das necessidades
e acordos estabelecidos entre semelhantes, e maleável na medida das transformações
destas necessidades. Mas do ponto de vista dos manos, a sociedade é hostil ou,
no mínimo, indiferente. A sociedade "não se importa", não vai alterar
seu sistema de privilégios para incluir e contemplar os direitos deles. A
regressão (do ponto de vista filosófico) a Deus faz sentido, num quadro de
absurda injustiça social, considerando-se que a outra alternativa é a regressão
à barbárie.
Vale lembrar - estarei sendo otimista, interpretando a
partir de meu próprio desejo? - que o Deus de Brown não produz conformismo,
esperança numa salvação mágica, desvalorização desta vida em nome de qualquer
felicidade eterna. Deus está lá como referência simbólica, para "não
deixar desandar" a vida desses moços nada comportados que falam numa
revolução aqui na terra mesmo ("Deus está comigo, mas o revólver também me
acompanha" Ice Blue ao JT, s/d) e lembram sempre: "quem gosta de nós
somos nós mesmos" ("Pânico na Zona Sul")
Mas que não se confunda este "gostar de nós" com
uma afirmação de auto suficiência, de um individualismo que só se sustenta
(imaginariamente!) nos casos em que é possível se cumprir as condições impostas
pela sociedade de consumo - a posse de bens cuja função é obturar as brechas da
"fortaleza narcísica" do eu, a alienação própria da posição do
"senhor", que não lhe permite enxergar sua dependência quanto ao
trabalho do "escravo", e a disponibilidade do dinheiro como fetiche
capaz de velar, para o sujeito, a consciência de seu desamparo. O mandato
"goste de você" emitido pelos Racionais não poderia ser uma
incitação ao individualismo mesmo se quisesse, já que estas condições estão
muito longe de se cumprir dada a situação de permanente desamparo e falta no
real, da vida na periferia - a não ser, é claro, em sua face bárbara, a
do tráfico e consumo de drogas.
O traficante representa, nas letras de Brown e Edy Rock, a
face bárbara do individualismo burguês: o cara que não está nem aí pra ninguém,
que só defende a dele, que não tem escrúpulos em viciar a molecada, expor
crianças ao perigo fazendo avião para eles. A outra face é a do otário, o
"negro limitado" (título de música - Brown/Rock), a quem falta
"postura", "atitude", que se ilude pensando que pode se
destacar sobre seus semelhantes recusando a raça. etc. "Não quero ser o
mais certo/ e sim o mano esperto", responde Brown ao mano
"limitado". Mais uma vez, uma postura moral se funda sobre a ameaça
extrema do extermínio. O "mano esperto" é o que sabe que a opção da
alienação - que na miséria da periferia precisa da droga para se sustentar -
está sujeita à pena de morte, à lei da selva da polícia brasileira ou destes
capitalistas selvagens que são os donos do tráfico: "A segunda opção é o
caminho mais rápido/ e fácil, a morte percorre a mesma estrada, é/ inevitável./
planejam nossa restrição, esse é o título/ da nossa revolução, segundo
versículo/ leia, se forme, se atualize, decore/ antes que racistas otários
fardados de cérebro atrofiado/os seus miolos estourem e estará tudo acabado./
Cuidado!/ O Boletim de Ocorrência com seu nome em algum livro/ em qualquer
arquivo, em qualquer distrito/ caso encerrado, nada mais que isso".
("Negro Limitado") .
A insignificância da vida, o vazio que nossa passagem pelo
mundo dos vivos vai deixar depois de nossa morte - nós que apostamos sempre em
marcar nossa presença deixando uma obra, uma palavra, uma lembrança imortal -
isto que a psicanálise aponta como a precariedade da condição humana e que um
neurótico de classe média precisa tanto trabalho para suportar, estão dados no
dia-a-dia, na concretude da vida no "inferno periférico"(Edy Rock) de
onde eles vêm. Portanto, a possibilidade do delírio narcísico-individualista
está excluída, a não ser que se encare as conseqüências da opção pelo crime.
"Não tava nem aí, nem levava nada a sério/admirava os ladrão e os malandro
mais velho/ mas se liga, olhe ao redor e diga/ o que melhorou da função, quem
sobrou, sei lá/ muito velório rolou de lá pra cá/ qual a próxima mãe a chorar/
já demorou mas hoje eu posso compreender/ que malandragem de verdade é viver
(grifo meu)/ Agradeço a Deus e aos Orixás/ parei no meio do caminho e olhei
para trás"...( "Fórmula Mágica da Paz"- Mano Brown).
A outra opção - a primeira, aliás, nos versos da música
"Negro Limitado" - é o apelo ao outro como parceiro na construção de
outras referências, na invenção de espaços simbólicos que possibilitem alguma
independência em relação à sedução do circuito crime-consumismo-extermínio.
Assim, o "goste de você" não soa como comando ao isolamento, a um
fechar-se sobre si mesmo como resposta para todos os problemas. Pelo contrário,
a frase soa como apelo ao outro para que reconheça e valorize a
semelhança entre eles.
O apelo ao reconhecimento é geralmente endereçado ao pai. O
irmão, o semelhante, será destinatário deste apelo apenas quando o pai dá as
costas? Penso que não; o reconhecimento paterno, fundamental para que o sujeito
constitua uma certeza imaginária sobre "quem ele é" (para o desejo do
pai), pode gerar também um aprisionamento narcísico. O sujeito só começa a se
mover de sua posição no triângulo edípico, entre o olhar da mãe que seduz e o
do pai que interdita e se oferece à identificação (e ao ideal), quando da
entrada de um outro, um irmão (consangüíneo ou não), que abre para a
alteridade, para a constatação, em espelho, de sua própria insignificância; mas
também para a infinidade de possibilidades subjetivas que se abrem ante a
descoberta da semelhança na diferença.
O outro funciona também como parceiro e cúmplice nas moções
de transgressão em relação à interdição paterna - e então, de duas, uma. Ou a interdição
não se sustenta mais - pense-se no caso de um pai perverso, por exemplo, capaz
de manter uma posição autoritária mas incapaz de simbolizar a lei e sujeitar-se
a ela - e neste caso os irmãos escapam à função paterna, fazendo sua própria
versão do desejo do pai (a père-version a que se refere Lacan) e
fundando, na delinqüência, uma gangue; ou a lei se mantém cumprindo sua
função mínima de interditar o gozo (aos filhos, mas também ao pai!), mas
a aliança fraterna possibilita que os sujeitos explorem e ampliem suas margens,
relativizando o discurso da autoridade encarnado pela figura do pai real. É a
constatação da semelhança na diferença que se dá com a entrada do "pequeno
outro", que permite ao sujeito separar a lei simbólica - diante da qual
todos se equivalem - da figura real do pai encarnado naquele sujeito frágil,
arbitrário, limitado e desejante que, mesmo quando se faça respeitar, é incapaz
de apagar as diferenças significantes entre todos os filhos que levam o mesmo
nome, o seu nome.
Fiz esta longa passagem para dizer que a fratria não é
convocada a operar só na falta do pai. Mas quando ninguém nessa vida encarna o
pai, quando é preciso apelar ao "Senhor" para imaginar que
"alguém" (no eixo vertical da constituição subjetiva) me ama e me
proíbe abusos, o reconhecimento entre irmãos se torna essencial. Até mesmo para
sustentar a existência deste Deus, aliás, que se não fosse o significante de
uma formação simbólica ( portanto coletiva ), seria o elemento central de um
delírio psicótico. Além disso, na falta do reconhecimento de um pai, é a
circulação libidinal entre os membros da fratria que produz um lugar de onde o
sujeito se vê, visto pelo olhar do(s) outro(s). Prova disto é a grande
importância que a criação de apelidos adquire nos grupos de adolescentes por
exemplo, como indicativos de um "segundo batismo", a partir de outros
campos identificatórios por onde os sujeitos possam se mover, ampliando as
possibilidades estreitas fundadas sobre o traço unário da identificação ao
ideal paterno. As identificações horizontais talvez permitam a passagem da
ilusão de uma "identidade" (em que o sujeito se acredita-se idêntico
a si mesmo, colado ao nome próprio dado pelo pai) à precariedade das
identificações secundárias, a partir de outros lugares que o sujeito vai
ocupando entre seus semelhantes, e que o apelido dado pela turma é capaz de
revelar.
Quando os Racionais apelam a que os manos se
identifiquem com a causa dos negros, estarão propondo um campo identificatório
- com sua diversidade de manifestação singulares - ou a produção de uma
identidade, com sua camisa-de-força subjetiva? "Gosto de Nelson Mandela,
admiro Spike Lee,/ Zumbi, um grande herói, o maior daqui./ São importantes pra
mim, mas você ri e dá as costas/ então acho que sei de que porra você gosta: /
se vestir como playboy, freqüentar danceterias/ agradar os vagabundos, ver
novela todo dia, / que merda!/ Se esse é seu ideal, é lamentável/ é bem
provável que você se foda muito/ você se autodestrói e também quer nos incluir/
porém, não quero, não vou/ sou negro, não vou admitir!/ De que valem roupas
caras, se não tem atitude?/ e o que vale a negritude, se não pô-la em prática?/
A principal tática, herança da nossa mãe África/ a única coisa que não puderam
roubar!/ se soubessem o valor que a nossa raça tem/ tingiam a palma da mão pra
ser escura também!" ("Júri racional" - Mano Brown) . A questão é
complicada. Uma vez, indagado sobre sua identificação ao judaísmo, Freud
respondeu que se não existisse anti semitismo, não faria questão nem de circuncidar
os próprios filhos; mas diante do preconceito, não tinha outra opção senão a de
se afirmar como judeu. Talvez se possa interpretar desta forma a convocação dos
Racionais a uma "atitude" que sustente o amor próprio entre os
negros contra o sentimento de inferioridade produzido pela discriminação, o que
passa pela afirmação da raça - este significante tão duvidoso, que produz
discriminação ao mesmo tempo que indica a diferença.
Mas quem sabe se possa mesmo ultrapassar esta limitação
imaginária, este suporte físico - cor da pele - que produz simultaneamente a
identificação e a discriminação racial? Quem sabe a multidão de admiradores dos
grupos de Rap não estarão tentando dizer, como os estudantes parisienses em
maio de 68, quando o governo tentou expulsar Daniel Cohn-Bendit sob a alegação
de não ser um cidadão francês - "somos todos judeus alemães"! - e
explodir a fronteira da raça pela via das identificações com as formações
culturais: somos todos manos negros da periferia? Finalmente está claro por que
posso me autorizar a falar de, ou mais, a falar com, os manos dos
Racionais. Pois se a afirmação dos campos identificatórios (estou
recusando propositalmente o termo identidade) não produzir laços
sociais, afinidades eletivas que incluam o semelhante na diferença (tornando
obsoletos os traços da raça, ou do sexo, por exemplo), há sempre de produzir
isolamento entre os grupos e, num sentido ou no outro, discriminação. Que a
auto-estima e a dignidade dos rapazes negros da periferia não dependam da
aceitação por parte da elite branca, não significa que não produzam outros
laços, outras formas de comunicação, inclusive com grupos mais ou menos
marginais a esta própria elite. Neste caso, a identificação que começou
passando pela cor da pele, ampliou-se para abrigar outros sentidos: exclusão,
indignação, repúdio à violência e às injustiças, etc. Não somos
"todos" pretos pobres da periferia, mas somos muitos mais do que eles
supunham quando começaram a falar.
O céu cheio de pipas
"Caralho, que calor, que horas são/ posso ouvir a
pivetada gritando lá fora/
hoje acordei cedo pra ver/ sentir a brisa da manhã e o sol
nascer./ É época de pipa, o
céu tá cheio/ quinze anos atrás eu tava ali no meio./
Lembrei de quando era pequeno,
eu e os caras./ faz tempo- diz aí! -o tempo não
para"... ("Fórmula mágica da paz" - Brown)
Este trecho, quase no final de "A fórmula mágica da
paz", é dos poucos - senão o único - em que o Rap dos Racionais permite
alguma sublimação dos sentidos, algum sentimento de elevação ou de alegria.
Afinal, não é isto que o "ritmo e poesia" deveriam nos proporcionar?
Mas não. Nenhuma exaltação, nenhuma referência sublime são
possíveis a uma arte que tem por principal função tentar simbolizar um
cotidiano que se depara todo o tempo com o nó duro do real, no sentido
que a psicanálise lacaniana atribui à palavra: o indizível, o que está além da
capacidade de elaboração pela linguagem, o que nos escapa sempre.
O real domina a vida da periferia. É disto que falam os
versos de Mano Brown e Edy Rock. São os últimos pensamentos de um homem que
acaba de ser baleado, depois de seguir a carreira de um amigo no crime e ter
sido acusado, pelo resto do bando, de entregá-lo à polícia. É o último dia na
vida de um ex-presidiário que tenta se readaptar e criar o filho dignamente,
mas acaba sendo acusado injustamente de um roubo nas redondezas e é executado
pela polícia que invade sua casa na madrugada.
É a história de um mano gente fina : "você viu aquele
mano na porta do bar? jogando bilhar, descontraído e pá/ cercado de uma pá de
camaradas/ da área uma das pessoas mais consideradas/ ele não deixa brecha, não
fode ninguém/ adianta vários lados sem olhar pra quem/ tão poucos bens, mais
que nada/ um fusca 73 e uma mina apaixonada"...("Mano na porta do
bar" - Brown e Rock. Citada na p.11). Mas que começa a mudar, cercar-se de
"tipos estranhos" que lhe prometem "o mundo dos sonhos" ; o
mano entrou no tráfico, matou a sangue frio, "usou e viciou a molecada
daqui" e tem o fim previsível: "você tá vendo o movimento na porta do
bar? /tem muita gente indo pra lá, o que será? (...)Você viu aquele mano na
porta do bar? Ontem o cara caiu com uma rajada nas costas..."
O real domina a vida da periferia, em suas faces extremas: a
droga e seu gozo mortífero; a violência do outro - freqüentemente a polícia -
com quem é impossível qualquer diálogo, qualquer negociação; a miséria, que
segundo Hanna Arendt nos exclui da condição humana porque nos faz prisioneiros
da necessidade; e acima de tudo, a morte. O real se manifesta na figura do
destino inexorável: hoje a pivetada vai para a escola, empina pipas na rua,
joga bola - logo mais estarão traficando, viciadas no crack, a caminho da morte
certa. As letras de Brown e Edy Rock falam de um verdadeiro extermínio dos
jovens de periferia; como acontece com os relatos dos sobreviventes dos campos
de concentração, não há lugar para o sublime aqui.
Também não há muito lugar para o prazer, a alegria, a
brincadeira. A droga e o álcool oferecem uma possibilidade de gozo. Os sonhos
de consumo, de apropriar-se dos fetiches burgueses, "moto nervosa/ roupa
da moda/ mina da hora", parecem oferecer um certo semblant de
felicidade (assim como para os consumidores ricos, aliás), mas ficam
inacessíveis a não ser que o cara enverede pelo crime. Não há beleza na
paisagem da periferia. Nada de sombra e água fresca; nada de "área de
lazer" - "Aqui não vejo nenhum centro poliesportivo/ pra molecada
freqüentar nenhum incentivo/ o investimento no lazer é muito escasso/ o centro
comunitário é um fracasso/ mas se quiser se destruir está no lugar certo/ tem
bebida e cocaína sempre por perto"...("Fim de semana no parque"-
Brown e Rock). A inveja da vida dos ricos, dos bairros burgueses, dos
privilégios, é inevitável: "olha só aquele clube, que da hora/ olha aquela
quadra, aquele campo, olha/ quanta gente/ tem sorveteria, cinema, piscina
quente/ olha quanto boy, olha quanta mina/ afoga aquela vaca dentro da piscina/
tem corrida de kart, dá pra ver/ é igualzinho ao que eu vi ontem na TV./ Olha
só aquele clube, que da hora/ olha o pretinho vendo tudo do lado de
fora"...
Apesar desta inveja, os manos tentam afirmar sua diferença.
A periferia que se valorize; os negros que tratem de bancar sua cultura, seus
valores - este é o antídoto contra a alienação, contra a sedução promovida pela
propaganda, pela tevê, arautos da sociedade de consumo. "Na periferia a
alegria é igual/ é quase meio dia a euforia é geral/ é lá que moram meus
irmãos, meus amigos/ e a maioria aqui se parece comigo./ E eu também sou o
bam-bam-bam e o que manda/ o pessoal desde as 10 da manhã está no samba/ preste
atenção no repique, atenção no acorde..."("Fim de semana...").
O real é a matéria bruta do dia-a-dia da periferia, é a
matéria a ser simbolizada nas letras do Rap. Uma tarefa que, como todo trabalho
de simbolização, depende de um trabalho de criação de linguagem que só pode ser
coletivo. É como se os poetas do Rap fossem as caixas de ressonância, para o
mundo, de uma língua que se reinventa diariamente para enfrentar o real da
morte e da miséria; por isso eles não deixam a favela, não negam a origem.
"Essa porra é um campo minado/ quantas vezes eu pensei em me jogar daqui/
mas aí, minha área é tudo o que eu tenho/ a minha vida é aqui e eu não consigo
sair/ é muito fácil fugir, mas eu não vou/ não vou trair quem eu fui, quem eu
sou" . ("Fórmula mágica da paz" - Brown)
Este sentimento de pertinência e de dívida simbólica para
com a origem e o semelhante lembram a diferença estabelecida por Alain Renault
entre indivíduo e sujeito. O primeiro, tributário do ideal individualista de independência
- centramento em si mesmo, negação da dívida, valorização narcísica do eu;
o segundo, herdeiro do princípio humanista de autonomia - emancipação em
relação a qualquer autoridade divina, transcendente, mas reconhecimento do laço
social como fundamento do que é propriamente humano em cada um. Sujeitos
autônomos, e não indivíduos independentes, os manos apelam a seus semelhantes
para refazer o assassinato do pai abusivo, opressor, e recriar uma lei que
proteja a todos do desamparo, que permita alguma alternativa ao real.
Enquanto isso, alguns raros momentos de contemplação são
contrabandeados pelas brechas de uma vida que não oferece nada de graça.
Acordar cedo, sentir a brisa, ver o sol nascer. O céu está cheio de pipas: como
uma madeleine dos pobres, a visão dos quadradinhos coloridos lá no alto
evoca a infância, o tempo perdido, a inocência que ficou para trás.
Mas as pipas são também a criação de um espaço virtual para
a beleza, neste "campo minado" sem pontos de luz. As pipas obrigam o
olhar a se manter acima da miséria, na direção de um céu que não é o céu da
morte, de Deus e das almas; é o céu dos vivos. O céu que as crianças enfeitam
com poucos recursos, cola, papel-de-seda e linha; céu da linguagem, céu humano.
O céu cheio de pipas da periferia é uma interferência estética sobre a miséria
e a recusa da desumanização que ela promove. Como a música, que só precisa das
ondas do ar para existir e repercutir, como os versos quilométricas do Rap, as
pipas da molecada representam a ultrapassagem do reino da necessidade e do puro
tempo imediato, sem passado e sem futuro, a que a necessidade nos reduz. No
poema de Brown, o céu cheio de pipas surge como evocação da infância e projeção
para um tempo futuro ("diz aí! - o tempo não pára"), um "fora
daqui/aqui mesmo", um real tornado manso pela força da cultura.
Mas é no tempo presente, saindo do barraco para sentir a
brisa da manhã, que o poeta/ narrador de "Fórmula mágica..." obtém
sua rápida epifania, seu curto instante de contemplação. A beleza, como se
sabe, não exige grandes pompas para exercer seu poder transtornador; razão pela
qual, apesar das diferenças de escolaridade, existem tantos poetas na periferia
quanto em qualquer outro lugar. Termino propondo uma ponte, tão arbitrária
quanto uma associação livre pode ser, entre a poesia de Brown e a prosa de Jean
Genet, seu primo distante, numa das muitas passagens do Diário de um ladrão
em que este escritor surpreendente estabelece uma relação entre a criação
estética e uma atitude moral:
"A emoção muito especial que, ao acaso, chamei de
poética deixava em minha alma uma espécie de rastro de intranqüilidade que ia
se atenuando. O murmúrio de uma voz, de noite, e no mar o barulho de remos
invisíveis, naquela situação estranha, me haviam transtornado. Conservei-me
atento para agarrar esses instantes que, errantes, me pareciam estar à procura
de um corpo, uma alma penada, de uma consciência que os anote e os experimente.
Quando o encontram, param: o poeta esgota o mundo. Mas, se ele propõe outro, só
pode ser da sua própria reflexão. Quando, na Santé, comecei a escrever, nunca
foi com o intuito de reviver minhas emoções ou de comunicá-las mas para que, da
expressão delas imposta por elas, eu compusesse uma ordem (moral) desconhecida
( de mim mesmo, em primeiro lugar)".(P.163)
Uma ordem que Genet chama moral pelo simples fato de
produzir uma fala nova e promover uma experiência "desconhecida de mim
mesmo em primeiro lugar", ou seja: que abra uma brecha na pedra dura do
real, adiando temporariamente nosso confronto inevitável com a morte.
NOTAS
1 - Veja-se a respeito o artigo de Contardo Calligaris,
"Este país não presta", introdução a Hello Brasil! São Paulo,
Ed. Escuta, 1991.
2 - "Tô ouvindo alguém me chamar" (Mano Brown) -
"Tô ouvindo alguém gritar meu nome/ parece um mano meu, é voz de homem/ eu
não consigo ver quem me chama/ é tipo a voz do Guima/ não, não, o guima tá em
cana/ Será? ouvi dizer que morreu, não sei. (...) Parceria forte aqui era nós
dois./ Louco, louco, louco e como era/ cheirava pra caralho, vixe! sem
miséria!/ todo ponta firme/ foi professor no crime/ também, maior sangue frio,
não dava boi pra ninguém!/ Puta, aquele mano era foda!/ só moto nervosa/ só
mina da hora/ só roupa da moda"...
3 - "O homem na estrada"(Mano Brown) - "O
homem na estrada recomeça sua vida/ sua finalidade, a sua liberdade, que foi
perdida, / subtraída/ e quer provar a si mesmo que realmente mudou/ que se
recuperou, que quer viver em paz/ não olhar prá trás, dizer ao crime nunca
mais/ pois sua infância não foi um mar de rosas não/ na Febem, lembranças
dolorosas então (...) Equilibrado num barraco incômodo, mal acabado e sujo/
porém seu único lar, seu bem e seu refúgio/ cheiro horrível de esgoto no
quintal/ por cima ou por baixo, se chover será fatal/ um pedaço do inferno aqui
é onde estou..."
4 - ‘Não confio na polícia, raça do caralho!/ se eles me
acham baleado na calçada/ chutam minha cara e cospem em mim/ é eu sangraria até
a morte, já era, um abraço/ por isso minha segurança eu mesmo faço".
Referências Bibliográficas
BARTHES, R. - "O mito como linguagem roubada" em: Mitologias.
São Paulo, Difel, 1975, pp 152-158.
CALLIGARIS, C. - Hello, Brasil! São Paulo, Escuta,
1990.
FREUD, S. - "Totem y Tabu" em Obras Completas
vol.II, Madri, Biblioteca Nueva, 1976.
GENET, J. - Diário de um ladrão. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1983.
NASIO, J.D. - A função do pai na obra de Jacques Lacan.
Campinas, Ed. Taurus, 1990.
RANCIÈRE, J. - Políticas da Escrita. Rio de Janeiro,
Ed. 34, 1999.
RENAULT, A. - O indivíduo. São Paulo, Difel, 1998.
Maria Rita Kehl
Rua Franco da Rocha, 498
05015-040 - São Paulo - SP
Fone: (11) 263-5725
E-mail: ritak@zip.net
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