MIRIAM CHNAIDERMAN*
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É assustador que um governo que vem da esperança na fratria transforme a rua em um sonho da burguesia
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A partir dessa experiência, venho defendendo a rua como espaço de trabalho e propondo a criação de equipes de trabalho itinerantes que possam ajudar a população de rua a viver de modo mais digno. Armei, dentro de mim, o sonho de transformar o Minhocão em um grande espaço de trabalho, com oficinas de pintura, de costura, de jardinagem, de cozinhas públicas. Temos vários relatos de ex-cozinheiros, ex-agricultores, ex-professores e ex-jornalistas que se encontram na rua. Será que não poderiam utilizar sua experiência anterior no trabalho na rua? Várias são as tentativas de conseguir subempregos ou de internar em "hospital-dia", busca-se sempre alguma forma de institucionalizar essas figuras. No desrespeito ao nomadismo, essas tentativas fracassam. Parece que a rua é mais tentadora apesar de todos os riscos.
Fui apreendendo que somos nós que temos de mudar nossa concepção do que é a rua -no nosso mundo, a rua foi deixando de ser espaço público, espaço de encontro com o outro. Tememos o assalto, a violência, os sequestros. É um dado de nosso cotidiano, de uma sociedade movida pelo nosso empobrecimento, que se fez gritante nos últimos anos. Mas não me parece que a solução seja a eliminação do espaço público como espaço da diferença.
A burguesia carioca reclamou quando o metrô pôde levar a zona norte às areias de Copacabana. É claro -do alto de seus apartamentos luxuosos de frente para a avenida Atlântica, não gosta de saber que a miséria habita ali do lado. Nós, psicanalistas, chamamos isso de "recusa da realidade".
Agora, em São Paulo, a burguesia pode ficar exultante -vai poder esquecer a miséria e a diferença: estão colocando grades e pedregulhos em lugares onde moradores de rua costumam ficar. Como argumento, fala-se em mau cheiro e em ameaças de assalto na volta para casa. E a prefeitura defende-se ao afirmar que está encaminhando os "mendigos" para albergues. Mais um paliativo que só faz tornar a paisagem urbana mais palatável para aqueles que, supostamente, sabem o que é o "viver bem". Como se, no mundo em que vivemos, tivéssemos de homogeneizar formas de vida. Algo que já foi muito bem realizado em regimes totalitários tão recentes em nossa memória. É assustador que um governo que vem da esperança na fratria transforme a rua em um sonho da burguesia onde as diferenças são sumariamente eliminadas.
*Miriam Chnaiderman é psicanalista, ensaísta e documentarista.
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