quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Análise de arquitetura 01

Panfleto recebido

Gostaria de começar aqui textos que vou divagar sobre arquitetura. Há pouco tempo me indagaram qual era a diferença de engenheiro para arquiteto. Tive dificuldade em definir para a pessoa, que pensava que as duas profissões eram a mesma coisa. Falei que o arquiteto pensa o espaço e o engenheiro era responsável por calcular a criação deste espaço. Senti que a pessoa ficou com cara de que esta história não convenceu. Mas na hora tentei em uma definição, sintetizar, no sentido e significado, as características para uma resposta pragmática. Depois pensei em como definir melhor a resposta. Então surgiu a ideia de escrever para que o próprio leitor faça sua síntese sobre o trabalho do arquiteto.

Estava entrando em uma padaria e recebi um panfleto de venda de um empreendimento residencial no bairro Vila Madalena em São Paulo. Resolvi analisar as plantas dos apartamentos como exercício de arquitetura e reflexão sobre o modo de vida das pessoas. Não tenho a intenção de expor negativamente os autores do projeto, é apenas uma análise com meu ponto de vista e talvez um problema de comunicação publicitária.
Não costumo pegar estas propagandas mas não sei porque aceitei. Tenho dificuldade em aceitar as mudanças neste bairro e quando vejo propaganda de edifícios brotando no local, evito para não ficar triste pensando que casas que tinham bastante qualidade residencial, estão sendo substituídas por empreendimentos como este.
Pelo panfleto não entendi se o prédio tem uso misto (comercial/residencial) e quais os serviços comuns destinados aos usuários. O panfleto apresenta duas plantas sendo uma de um apartamento dois dormitórios (uma suíte) com área de 57m² e outra com um apartamento de 24m².

A análise foi feita olhando para estes desenhos. 
As plantas dos tipos de apartamento.

Comecei a olhar e pensar que os imóveis seriam projetados para pessoas que não tem o hábito de cozinhar e limpar a casa. Posso estar enganado pois não sei se o prédio abriga uma lavanderia coletiva em sua área comum aos condôminos. Não há indicação sobre isso.

Perspectivas das áreas comuns

.Mas nos dois tipos de apartamento não há área de serviço, ou melhor o apartamento de 57m² tem esta área integrada ao terraço. Também a área para cozinha é muito pequena. No caso do apartamento de 24m², há apenas espaço para uma geladeira pequena e uma pequena bancada com uma pia e um cooktop. Não há espaço para preparo dos alimentos (o que cozinheiros denominam como mise en place termo francês que significa "pôr em ordem, fazer a disposição").
Continuarei a analisar este apartamento menor, que se assemelha a uma quitinete. Nele, não há ventilação cruzada, portanto há uma deficiência na circulação de ar. A ventilação do sanitário é feita por shaft (duto) ou não há ventilação, pois não há abertura para o lado externo do edifício. Por consequência, não há também iluminação natural. Como já mencionado não há área de serviço e não há indicação pela planta de duto de exaustão para o cooktop. Não é feito para cozinhar e não incentiva isto, já que engorduraria todo o apartamento que na verdade é apenas um dormitório. Já fiz uma reforma de uma quitinete e sei que não há outro modo de inserir estes serviços, mas como empreendimento novo e com a falta de espaço e propondo novos hábitos a cultura local, como a lavanderia coletiva que suponho existir no prédio, talvez fosse melhor ter um espaço comum para cozinhar também, acho que isto é “forçar a barra”, mas para a tipologia sugerida talvez fosse a solução.
O terraço é um pouco maior que a metade da área destinada para dormitório e pelo layout sugerido parece uma sala de estar, com um móvel com televisão e um pequeno sofá do lado oposto. Prevejo que a iluminação natural interferirá na qualidade da imagem da televisão, bem como a luz do sol diminuirá a vida útil da mesma. Sem contar o conflito do sons externos e o som do televisor. Não dá para entender se há um fechamento de vidro no terraço, pela configuração parece que sim, mas se o usuário fechar o vidro e se colocar cortina, interromperá a ventilação e iluminação natural.
Por último, essas unidades são chamadas de serviços de moradia o que pela minha ignorância não sei o que significa. Talvez mais apropriado seria chamar de serviços de dormitório, um local que a pessoa permanecerá somente para dormir.
Não há no panfleto o valor do imóvel, mas considerando o preço do m² no bairro, penso que há uma divergência entre custo e benefício. Imagino também que o valor do condomínio não será baixo (suposição, não consta essa informação no panfleto). Outra coisa que não entendi é que no desenho do edifício exposto na capa do panfleto (as fachadas) não consegui localizar a posição destas unidades.
O outro tipo de apartamento, de 57m², tem dois dormitórios sendo um deles uma suíte. Parece um apartamento desenvolvido para um casal com um filho. A suíte tem um espaço adequado ao contrário do outro dormitório que é pequeno. O sanitário da suíte tem ventilação e iluminação natural (até evidenciada pelo texto indicativo no desenho) mas o outro sanitário não tem essa condição, fica na parte interna da construção tendo os mesmos problemas do sanitário da unidade menor de 24m². A cozinha é pequena, também não há espaço para preparo dos alimentos e um fato curioso que a área de serviço está integrada ao terraço, que pelo layout assemelha-se a um ambiente de estar. Imaginei que há conflito de situações, por exemplo, ter roupas ou panos de limpeza no varal quando há visitas neste terraço.
Minha conclusão é de que estas residências têm deficiências de projeto e que o panfleto não informa corretamente os possíveis compradores. Pode atender a uma demanda comercial, mas tenho dificuldade em pensar habitação apenas como rendimento para as construtoras. Além disso, há um aumento de população que seu entorno não necessariamente comporta.
Quem irá comprar estes tipos de imóveis nem sempre terá essa visão para perceber tais questões. Pode ser que o que foi considerado não importa ao comprador também. Mas a percepção do arquiteto pode ajudar a aumentar a visão crítica sobre o espaço e melhor organizá-lo para o que for destinar seu uso.


terça-feira, 22 de agosto de 2017

O sumiço do marmelo - Ivan Angelo*

Gente, onde foram parar os marmelos? Não se encontram mais. Pode ser que os mais novos dos leitores, de 30 anos para baixo, nunca tenham visto um marmelo; pode ser que algum leitor, em incerto ano, tenha visto essa dourada fruta por acaso em alguma feira livre, um hortifrúti, uma banca de raridades do Mercado Central. Era fruta popularíssima, e popular foi por centenas de anos. Sim, leitor, centenas, trazida da Ásia pelos colonizadores portugueses no século XVI. O marmeleiro gostou tanto das nossas serras e quintais que nem era preciso plantá-lo, nascia. Em 1940, diz o IBGE, o Brasil produzia 32 000 toneladas da fruta, a maior parte nas serras do sul de Minas. E cadê? Só para falar da popularidade: na primeira metade dos anos de 1900, uma marchinha de Carnaval fez enorme sucesso dizendo: “Marmelo é fruta gostosa / que dá na ponta da vara, / mulher que chora por homem / não tem vergonha na cara”. Poderá o leitor perguntar: que tem a fruta que ver com a mulher? Bom, as marchinhas eram assim destrambelhadas; ou pode ser que essa insinuasse nas entrelinhas que a vara é que tinha que ver. Houve época em que era de muito uso no país a vara de marmelo, corretivo caseiro das crianças. Nossa, como doía!
Falo do marmelo, mas sumiram outras frutas. Cadê o marolo? Também chamado nona, araticum, cabeça-de-negro. Era comum em décadas passadas, perfumava janeiros com seu cheiro forte, trazido do cerrado pelos fruteiros do mercado e ambulantes. Sumiram, ficaram só uns três primos: fruta-do-conde, atemoia, graviola, que precisam de cultivo e cuidados, não são abusados como o rústico marolo, que vigora no ermo.
E a manga? Dominam as feiras e supermercados as vistosas e saborosas filhas de mangueiras importadas da Flórida, como a palmer, a tommy, a haden, introduzidas aqui há algumas décadas e que desbancaram, literalmente desbancaram, tiraram das bancas, as nossas centenárias espada, coração-de-boi, manga-rosa, carlota, carlotinha, bourbon, ubá, coquinho, ouro e tantas mais. Sumiram porque eram ruins? Eh-eh. Não se tem notícia de manga ruim. Sumiram porque eram vítimas fáceis de pragas, davam em árvores muito altas, de difícil acesso e proteção, foram vencidas pela tecnologia genética. Mesmo caso do nosso mamão de quintal, grande, trocado pelo híbrido chinês, o formosa. Dizem que as cores verde e rosa da Mangueira vêm da profusão de mangas-rosa no bairro. Ainda haverá? Nossas mangueiras sumiram dos quintais das casas, os próprios quintais sumiram, vão sumindo as casas.
Frutas sem valor comercial também sumiram. Alguém dá notícia do escuro e lustroso jambo? Era popular até no eufemismo que buscava elogiar a pele das mulheres negras: “morena cor de jambo”. Araçá, nome de uma região da cidade onde o araçá crescia que nem mato, e que virou cemitério — cadê a fruta? E sua parentazinha, a gabiroba, goiabinha do mato — cadê? O cambuci, que também virou nome do bairro, sumiu de lá e dos fruteiros. Já era.
Comecei a falar do marmelo e entrei por veredas. Volto ao desaparecido, que procuro desde janeiro; o importado costumava vir em junho. Uma doceira de blog postou na internet: se você souber de marmelos à venda, corra!, compre todos, que são raridade. Todos, não, por favor, reservem-me alguns, me avisem. Ah, aquela promessa de delícias enquanto repousavam na fruteira, aquele gosto ácido adstringente dos pedacinhos roubados da tigela durante o preparo, aquele cheiro que se levantava da panela na fervura em calda de açúcar, aquele gosto da compota fresca, da geleia, da marmelada. Bateu larica, ou saudade, uma coisa assim.

* Retirado de Revista Veja São Paulo - 14.06.2017